O vento sopra forte hoje. Forte o bastante para nos empurrar suavemente, sem precisar for?ar as velas. Um bom presságio, penso, enquanto rabisco números no pergaminho amassado sobre a mesa. A tripula??o come mais do que deveria. Se continuarmos nesse ritmo, vamos ficar no vermelho antes mesmo de voltarmos para a cidade.
Tenho certeza que as reclama??es n?o v?o demorar pra chegar.
"Capit?o Ignácio isso, capit?o Ignácio aquilo…"
Como se eu fosse responsável pela gula deles. Só precisam gastar menos com putas e deixar mais pra comida, é simples.
— VELAS NO HORIZONTE!
O grito veio do alto. Droga.
Seguro o tinteiro antes que role pela madeira e me levanto de imediato, saindo da cabine para encarar o convés. O sol está forte demais para os meus olhos já cansados, ent?o aperto as pálpebras antes de erguer o olhar para o topo do mastro principal.
— De onde vieram?
Lá em cima, o vigia se inclina um pouco para frente, uma m?o segurando firme a luneta, a outra protegendo os olhos do sol escaldante. Ele devia usar mana, é claro, já disse isso mil vezes. Mas tudo bem, sei que mana cansa, também sou um homem das antigas.
N?o pude deixar de notar a hesita??o antes de responder, e isso me incomoda.
— Do nada, capitán. — A voz dele é carregada com aquele sotaque chiado dos portos do sul. Soa bem nos ouvidos, ele devia cantar mais. — Nenhum porto por perto. Nenhuma outra embarca??o nas águas. Só… apareceu.
A pele da minha nuca se arrepia. Isso n?o é bom.
Caminho até a amurada e tomo a luneta do segundo imediato, ajustando-a com dedos ágeis. O mar está limpo, azul como vidro polido, mas assim que foco no navio ao longe, sinto um peso desagradável no est?mago.
Velas negras.
Já vi piratas antes. Já negociei com alguns. Já lutei contra outros. Mas esse navio? N?o conhe?o. A estrutura n?o segue nenhum modelo que eu reconhe?a. Grande, mas n?o pesado. Feito para velocidade, n?o para resistência. N?o parece um gale?o de carga, nem uma corveta de ataque. é algo diferente. Algo que n?o pertence a essas águas.
— é de alguma rede comercial conhecida? — pergunto, ainda tentando processar o que vejo.
O vigia mexe-se desconfortável no mastro.
— Talvez… mas n?o me parece com nada que já vi, capitán. — Ele franze os olhos. — As velas têm um símbolo… um tipo de cranio? Ou um dem?nio? é estranho, mas n?o parece bandeira honesta.
Meu est?mago revira.
Estamos t?o perto da cidade. Se tivéssemos mais um dia, talvez metade de um, já estaríamos seguros. Mas no mar, uma única decis?o errada pode custar tudo.
— Merda... parecem piratas?
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Ele hesita de novo. N?o gosto disso.
— N?o sei dizer. N?o s?o como os daqui, eso es cierto. — O silêncio dele se prolonga, e percebo que há algo mais.
— Fale logo.
— Consigo ver os canh?es, se?or. Muitos. — Sua voz sai mais baixa, quase tensa. — N?o s?o aqueles barris enferrujados, esses s?o reales. Pelo menos… treinta. Talvez mais.
Engulo seco, sentindo o gosto salgado da maresia na boca. Trinta canh?es. Se estamos vendo essa quantidade de longe, quantos ainda n?o est?o visíveis?
Des?o a luneta devagar, olhando para o meu próprio navio. A Aurora Mercante nunca foi feita para guerra. Meia dúzia de canh?es, e mesmo assim, mais para afastar predadores marítimos e pequenos ladr?es do que para enfrentar algo assim.
Um navio com trinta canh?es n?o se move por pouca coisa.
O que eles querem? Roubo? Sequestro? Somos mercadores simples, n?o carregamos fortunas. Mas ent?o, por que esse maldito aperto no peito n?o vai embora?
Viro para minha tripula??o. Alguns já notaram o clima estranho. A conversa no convés diminuiu. Um silêncio carregado se espalha. Um silêncio que pesa nos ombros e torna o ar espesso.
Merda.
E ent?o, dou a única ordem possível.
— Ergam a bandeira branca. Agora.
A bandeira sobe.
O branco tremula contra o céu límpido, uma súplica silenciosa, um pedido mudo por bom senso. N?o é vergonha, sabe? No mar, saber quando baixar a cabe?a é o que mantém um capit?o vivo. Nem sempre levantar o branco significa rendi??o — às vezes, é apenas um acordo n?o verbal, uma forma de evitar um conflito que n?o precisa acontecer.
Se n?o forem nos atacar, passam direto. Se forem, tomam o que querem e nos deixam ir. Bem, quase sempre.
Vamos torcer.
— Armas em punho, idiotas. Mas sem hostilidade.
A ordem sai seca, sem espa?o para discuss?o. N?o que isso importe — ninguém gosta de receber uma ordem como essa. Seguro minhas próprias m?os atrás das costas para n?o trair a inquieta??o crescente que sobe pela minha espinha.
Os homens obedecem, mas suas m?os est?o trêmulas. Eles agarram o ferro frio de fac?es, pistolas de percuss?o, mosquetes velhos que talvez nem disparem direito.
E o navio deles se aproxima.
Rápido demais. Rápido de um jeito que n?o faz sentido.
A distancia entre nós encurta num piscar de olhos. O vento n?o está forte o suficiente para justificar essa velocidade. N?o há correnteza favorável. N?o há explica??o lógica.
Sinto o est?mago se fechar ainda mais em um nó doloroso, o tipo de desconforto profundo que aperta o diafragma e sufoca o ar nos pulm?es. Tento engolir, mas minha garganta está seca como areia.
Isso é insano. Já est?o aqui.
Minha vis?o treme. Meu corpo falha.
Um peso invisível escorre pela espinha e finca garras em meus joelhos. Eles fraquejam. Um tremor sobe pelas minhas pernas, espalha-se como uma febre silenciosa e amea?a me jogar contra o ch?o. Seguro firme na amurada, as unhas cravando na madeira. Meu cora??o bate forte, rápido, como se meu próprio corpo tentasse me avisar antes que minha mente alcance o raciocínio.
Algo está errado. Muito errado.
Olho ao redor. Meus homens também sentem. Alguns piscam rápido, tentando clarear a vis?o. Outros se apoiam nas próprias armas, os ombros pesados como se estivessem lutando contra um cansa?o repentino. Um dos marujos ao meu lado cambaleia para trás, os olhos arregalados, e ent?o cai de joelhos com um baque surdo, como se a gravidade tivesse ficado mais forte em seus ossos.
Depois outro.
E outro.
Tento ordenar algo, qualquer coisa, mas n?o encontro a voz. Minha mente quer lutar, quer agir, mas meu corpo pesa como se estivesse sendo sugado por um redemoinho invisível.
O que está acontecendo? Alguma maldi??o? Um truque do inferno?
Meus pensamentos lutam por uma resposta, mas só encontram culpa. Eu sabia que devia ter deixado uma moeda de cobre na primeira prancha do convés quando partimos. Toda viagem precisa de sua oferenda, um presente ao mar para que ele nos reconhe?a e n?o nos tome antes da hora. Mas n?o — fui p?o-duro, fui cético. Agora o oceano parece querer sua dívida, e o diabo veio cobrar por ele.
Ou talvez… talvez n?o seja o diabo.
,Com certeza aquela mulher é algo pior.
Ela está sorrindo.
Sorrindo.
Como se estivesse se divertindo, como se estivesse ca?ando. Um sorriso selvagem, de alguém que sabe que já venceu. O tipo de sorriso que só um louco ou um monstro usa antes de rasgar uma presa com os dentes.
Meu cora??o bate contra minhas costelas.
Eu sou um homem do mar. Vi aberra??es. Vi monstros. Vi homens jogarem os próprios amigos no oceano por uma promessa de ouro. Mas nunca vi alguém sorrir assim.
O peso me puxa para baixo, mas n?o é mais o navio que me for?a a ceder, nem essa sensa??o invisível que suga minha for?a.
é o medo.
Meu cora??o já decidiu antes mesmo que minha mente acompanhe.
Cedo. Eu cedo. N?o há luta a ser travada. N?o há resistência a ser feita.
O mar já decidiu por mim.
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Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!
Estou meio sem tempo e n?o est?o saindo resultados bons...