home

search

Síndrome de Abstinência Digital

  Quase seis horas até o encontro. Seis horas sem seu chip neural, sem notifica??es, sem assistentes digitais. Seis horas de puro silêncio mental.

  "E agora?" murmurou, sentindo-se subitamente desorientado.

  A cidade parecia estranhamente diferente sem as informa??es digitais sobrepostas. As ruas tinham cores mais vivas, mais reais. Sem os filtros cosméticos da realidade aumentada, S?o Paulo mostrava suas cicatrizes: rachaduras nas cal?adas, grafites n?o aprovados, pessoas sem os avatares digitais que normalmente as embelezavam.

  Bitgado piscou repetidamente, um reflexo involuntário tentando ativar comandos neurais que n?o mais funcionavam. Tentou olhar para o canto superior direito de sua vis?o, onde o relógio digital normalmente flutuava. Nada. O tempo agora era um conceito abstrato, n?o mais um número preciso piscando constantemente.

  Verificou o relógio mecanico em seu pulso, um instrumento estranho que tinha recebido junto com o kit analógico. Os ponteiros indicavam 14:15. Tinha que estar no restaurante às 20:00. Como diabos iria calcular quanto tempo tinha? Precisou contar nos dedos. Cinco horas e quarenta e cinco minutos.

  "Isso é ridículo," pensou. "Como as pessoas viviam assim?"

  Seu est?mago roncou. Normalmente, seu chip neural teria alertado sobre níveis baixos de glicose, sugerido o estabelecimento alimentício mais conveniente, calculado o tempo ideal de refei??o e otimizado seu pedido com base em seu perfil nutricional. Agora, havia apenas a sensa??o primitiva de fome.

  Olhou ao redor. As lanchonetes e restaurantes pareciam diferentes sem suas avalia??es flutuantes e menus holográficos. Como escolher onde comer sem algoritmos de recomenda??o?

  Depois de vagar por alguns minutos, avistou uma pequena lanchonete sem qualquer integra??o digital visível. A placa dizia simplesmente: "Lanches da Dona Zefa – Desde 2031".

  "Bem, pelo menos parece velho o suficiente para ser confiável," murmurou para si mesmo.

  Ao entrar, foi atingido pelo cheiro – gordura real, temperos genuínos, n?o os aromas sintéticos e nutricionalmente calibrados dos estabelecimentos modernos. O lugar estava modestamente ocupado, e o mais surpreendente: as pessoas estavam conversando. Cara a cara. Sem interfaces neurais intermediárias.

  Uma senhora robusta o saudou de trás do balc?o.

  "Primeira vez offline, né, querido? Dá pra perceber pela forma como você olha para tudo, como se estivesse vendo cores novas."

  The genuine version of this novel can be found on another site. Support the author by reading it there.

  Bitgado sorriu, envergonhado. "é t?o óbvio assim?"

  "Querido, eu alimento gente desconectada há mais de 20 anos. Reconhe?o os sintomas da 'síndrome de abstinência digital' de longe." Ela colocou um cardápio físico à sua frente – papel laminado, com fotos impressas de sanduíches e pre?os escritos à m?o.

  "O que você recomenda?" perguntou Bitgado, desconfortável por precisar tomar uma decis?o alimentar sem análise algorítmica.

  "Para um novato offline? O Especial da Zefa. Bacon de verdade, n?o aquela porcaria sintética de soja texturizada, p?o fermentado naturalmente, e maionese caseira que daria um tro?o no Ministério da Saúde." Ela piscou conspiratoriamente. "Comida de verdade, pro seu cérebro lembrar que existe sabor além das proteínas otimizadas."

  Enquanto esperava, Bitgado observou os outros clientes. Diferente dos restaurantes convencionais, onde todos comiam metodicamente enquanto navegavam em seus feeds neurais, aqui as pessoas conversavam, riam, e – mais chocante – alguns até jogavam cartas físicas em uma mesa no canto.

  "Isso é realmente estranho," pensou. "Pessoas passando tempo juntas sem estarem simultaneamente fazendo outra coisa."

  Dona Zefa colocou o sanduíche à sua frente – grande, bagun?ado e nada parecido com as refei??es precisamente arranjadas dos estabelecimentos conectados.

  Ao dar a primeira mordida, Bitgado quase engasgou. O sabor era intenso, complexo, quase doloroso para papilas gustativas acostumadas com a comida padronizada. Percebeu que n?o conseguia parar de comer, mesmo sem receber os habituais estímulos neurais de satisfa??o que o sistema normalmente fornecia durante as refei??es.

  "Isso é..." ele tentou encontrar palavras enquanto mastigava.

  "Comida de verdade, querido. Sem ajustes de sabor via chip neural, sem moduladores de dopamina para simular satisfa??o, sem contadores calóricos em tempo real." Dona Zefa sorriu com orgulho. "Apenas ingredientes reais preparados por m?os humanas."

  Enquanto comia, Bitgado notou um mural na parede com diversos cartazes e anúncios – algo raramente visto na era digital. Após terminar seu sanduíche, aproximou-se, curioso.

  Entre anúncios de aulas de viol?o e servi?os de conserto de equipamentos antigos, um pequeno cart?o chamou sua aten??o:

  "ENCONTRO DE COLECIONADORES DE MíDIA FíSICA – 15H – LIVRARIA RESISTêNCIA"

  Dona Zefa apareceu ao seu lado, recolhendo o prato vazio.

  "Se interessou pelo encontro de colecionadores?" perguntou casualmente, embora seus olhos o estudassem com nova intensidade.

  "Parece interessante," respondeu Bitgado, cauteloso. "Você conhece esse lugar? Livraria Resistência?"

  Dona Zefa olhou ao redor discretamente antes de responder em voz baixa:

  "Três quadras ao norte, prédio azul com vitrine de livros antigos. Diga que 'veio pela recomenda??o da Zefa' se quiser mais que livros."

  "E o que exatamente eu encontraria além de livros?" arriscou Bitgado.

  Ela sorriu enigmaticamente. "Coisas que o sistema prefere que n?o existam. Agora vá, você tem algumas horas antes do seu... compromisso da noite."

  Com uma nova dire??o e propósito, Bitgado agradeceu, queria deixar uma gorjeta generosa (algo que o sistema sempre desencorajava como "ineficiência econ?mica"), mas n?o tinha dinheiro físico ao perceber esse desconforto "Deixa garoto, é cortesia para os novos desconectados" disse Dona Zefa, Bitgado Agradeceu e saiu.

  Já na rua olhou para seu relógio analógico. 15:05. Estava atrasado cinco minutos para um encontro que nem sabia se devia comparecer, mas como tinha tempo até às 20:00 parecia uma forma útil de lidar com tédio do mundo offline.

Recommended Popular Novels