Os olhares fixados sobre Bitgado como um enxame de drones de fiscaliza??o sobre um sonegador de impostos. Ele sentiu suas bochechas esquentarem com o tipo de constrangimento que n?o podia ser desativado por nenhum aplicativo de controle emocional.
"Pessoal, é só um cara normal que acabou de desconectar," disse Bitgado, tentando diminuir as expectativas. "Nem sei direito o que estou fazendo aqui."
Uma jovem com dreads azuis e o que parecia ser um teclado mecanico vintage pendurado no pesco?o como um colar deu um passo à frente.
"N?o seja modesto, n?o há muitos desconectados , novatos s?o raros como a verdade " ela falou, olhos brilhando. "Seu meme na opera??o do Centro Cultural literalmente fritou os implantes neurais de três oficiais da Polícia Cibernética. Eles tiveram que ser reiniciados manualmente. Imagina! Um reset cerebral for?ado!"
"Como você sabe disso?" Bitgado perguntou, genuinamente surpreso.
Um homem mais velho com uma barba que parecia ter escapado dos anos 2010 riu. "Meu filho é técnico neural no Hospital das Clínicas. Ele ainda trabalha integrado ao sistema, mas simpatiza com nossa causa."
Cecília bateu palmas para chamar aten??o. "Pessoal, vamos ao que interessa. Nosso amigo Bitgado tem um encontro importante esta noite, mas antes precisamos equipá-lo adequadamente para isso."
O grupo rapidamente se reorganizou, formando uma espécie de linha de produ??o improvisada. Cada pessoa contribuiu com algum item ou conhecimento.
"Isto é uma caneta especial," explicou a garota dos dreads, entregando o que parecia ser uma simples caneta esferográfica. "Parece normal, mas contém tinta invisível que só pode ser lida sob luz ultravioleta. A ponta oposta é a luz ultravioleta."
"E isto," disse um homem com óculos retr? gigantescos, "é um dispositivo de disrup??o de reconhecimento facial." Ele entregou o que parecia ser um broche comum com o logo da bandeira brasileira. "Emite padr?es infravermelhos que confundem os algoritmos de identifica??o."
Um senhor idoso se aproximou com algo que parecia uma carteira de couro antiga.
"Carteira com bloqueio de RFID," explicou ele. "Impede que seus documentos físicos sejam escaneados remotamente."
Por quase vinte minutos, Bitgado recebeu equipamentos analógicos modificados com tecnologias discretas - um relógio que detectava campos de vigilancia, uma pílula de emergência para apagar memórias recentes, e até mesmo um par de meias que, segundo uma senhorinha de aparência completamente inofensiva, eram muito confortáveis mas era só isso mesmo, eram meias.
"Vocês realmente levam essa coisa a sério," murmurou Bitgado enquanto guardava os itens.
"Quando o governo transforma a democracia em um jogo pay-to-win, a resistência precisa conhecer todas as mecanicas ocultas," respondeu Cecília. Ela ent?o se virou para o grupo: "Agora, nosso convidado precisa da informa??o final."
Ela guiou Bitgado de volta para a sala onde o livro com as páginas seladas aguardava. Com um pequeno estilete, Cecília cuidadosamente abriu o selo.
"Esta se??o contém informa??es sobre o Grande Bug," explicou ela, sua voz quase um sussurro. "A falha fundamental que encontramos no sistema SiFu."
Bitgado folheou as páginas recém-abertas, seus olhos arregalando-se à medida que absorvia a informa??o. Diagramas técnicos, códigos e, mais importante, evidências documentais detalhando como a OrbeCorp havia inserido uma "porta dos fundos" no sistema.
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"Isso é... inacreditável," murmurou ele.
"De acordo com nossos hackers," continuou Cecília, "existe uma falha no algoritmo principal que permite, durante a contagem final de votos, que certos 'modificadores de peso' sejam aplicados aos votos de diferentes regi?es. Tecnicamente, cada voto ainda é contado, mas alguns valem mais que outros."
"Como um gerrymandering algorítmico," disse Bitgado, lembrando-se de suas aulas de história.
"Exatamente. E o pen-drive que você entregou hoje contém a prova final – o código-fonte original com os comentários dos desenvolvedores explicando exatamente como o sistema pode ser manipulado."
Bitgado finalmente entendeu a importancia de sua miss?o. "E quem é o contato que vou encontrar hoje à noite?"
Cecília respirou fundo. "Um dos arquitetos originais do sistema. Alguém que ajudou a criar o SiFu e agora... bem, digamos que está arrependido. Ele pode ser nossa única chance de expor tudo antes das elei??es."
Nesse momento, o bibliotecário apareceu apressadamente, sua express?o tensa. "Cecília, detectamos movimento suspeito do lado de fora. Possível varredura de emana??es tecnológicas."
"Polícia Cibernética," murmurou Cecília. "Eles devem estar rastreando sinais de tecnologia n?o-registrada." Ela se voltou para Bitgado. "Você precisa ir agora. Usaremos o túnel de emergência."
Antes que pudesse protestar, Bitgado foi levado por uma passagem escondida atrás de uma estante móvel que revelou um estreito corredor.
"Este túnel foi construído durante as Revoltas da Soja de 2045," explicou Cecília enquanto caminhavam rapidamente. "Conecta vários pontos de resistência no centro antigo."
Após vários minutos navegando pelos túneis mal iluminados, eles emergiram através de uma passagem oculta dentro... de um banheiro químico em uma pra?a.
"Sério? Um banheiro químico?" Bitgado olhou incrédulo para Cecília.
"O melhor esconderijo é aquele que ninguém quer investigar," ela deu de ombros. "Agora, vá para o restaurante. Seu contato estará esperando."
Ela verificou seu relógio analógico. "S?o 19:30. Você tem tempo suficiente para chegar lá caminhando normalmente. Lembre-se: confie em seus instintos e, mais importante, n?o reconecte ao sistema sob hipótese alguma seu bloqueio neural deve acabar após ás 00;00.
Com um último aperto de m?o, Cecília voltou para o túnel, fechando a passagem secreta t?o perfeitamente que, segundos depois, parecia impossível que existisse uma porta ali.
Bitgado saiu do banheiro químico, ajustando suas roupas e tentando parecer natural. Consultou o endere?o no cart?o de visitas e seu mapa em papel.
Enquanto caminhava em dire??o ao restaurante Velho Zé, percebeu algo estranho: pela primeira vez em anos, ele estava completamente presente no momento. Sem feeds de notícias, sem atualiza??es constantes, sem joguinhos mentais para preencher cada segundo disponível.
As cores da cidade pareciam mais vibrantes, os sons mais ricos, até mesmo o ar poluído de S?o Paulo tinha um aroma particular que seus sensores olfativos biodigitais normalmente filtrariam.
"Ent?o é assim que era antes," pensou, observando as pessoas ao seu redor - a maioria andando como zumbis, olhares vazios enquanto consumiam conteúdo digital através de seus chips neurais, ocasionalmente desviando automaticamente de obstáculos sem nunca realmente verem o mundo ao redor.
O mais perturbador era que ele agora conseguia ver a gamifica??o da vida, a internet 9.3, acontecendo em tempo real. Pessoas mudando repentinamente de dire??o porque receberam uma notifica??o de "miss?o aleatória", com recompensa de drex, ,— "miss?o" nosso novo nome para trabalho — outras tirando fotos mentais de pequenas infra??es cívicas para ganhar pontos de cidadania, comerciantes oferecendo descontos para clientes com classifica??o "Diamante" , uma camada invisível de incentivos e recompensas controlando sutilmente o comportamento de milh?es como pe?as em um imenso tabuleiro, todos conectados a todo momento.
Quando finalmente avistou a fachada discreta do restaurante Velho Zé, Bitgado parou por um momento, ajustando mentalmente sua estratégia.
"Sem sistema, sem rede de seguran?a," murmurou para si mesmo. "Apenas eu, minhas decis?es e um jogo cujas regras ainda estou descobrindo."
Respirando fundo, ele empurrou a porta do restaurante, pronto para conhecer o misterioso arquiteto arrependido do sistema que havia transformado a democracia brasileira em um battle royale digital.
O que ele n?o esperava era encontrar uma figura familiar sentada sozinha em uma mesa nos fundos - alguém que conhecia apenas através de memes, notícias e propagandas oficiais inescapáveis nas telas do metr?: o próprio Ministro da Ciência e Tecnologia.