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UM ELLOS, UM ANJO E UM DEMÔNIO INDECISO

  Sempre entendi que cada um é responsável por si e pelo caminho que escolhe. Ent?o, eu deveria merecer alguma ajuda?

  Por um momento RoupaSuja ficou em dúvida se tudo estava acontecendo mesmo, se aquela tens?o que sentia era verdadeira. Ali o vento a?oitava os picos das montanhas, correndo pelos dentes das serras, impassível e natural como sempre, feliz, sussurrando segredos aos ouvidos de quem soubesse ouvir.

  Suspirou ao ver uma calda de nuvens brancas se despregando de uma serra congelada.

  Devagar inspirou fundo, sentindo com prazer o uivo do vento nos ouvidos e o frio suave correndo por aquele mundo.

  Devagar abriu os olhos.

  O céu estava azul anil, e apenas havia uma nuvem imensa como uma bigorna alva apoiada no horizonte à Leste. Teve que fazer um pequeno esfor?o para n?o saltar no ar e flutuar sobre aquela nuvem e se deixar afundar nela, se perdendo nos vales e ravinas brancas e mutantes.

  - O que acredita que ele seja, sonhador?

  RoupaSuja, meio a contragosto, deixou as vis?es que embalava se desfazerem, a mente retornando.

  - é realmente um dem?nio, mas um dem?nio raro – respondeu com a voz ainda um tanto pregui?osa. - Há muitas estórias antigas que contam de um dem?nio poderoso, comparável aos dois que dominam as montanhas. Mas esse foi infectado.

  - Infectado?

  — Sim! Ele foi infectado por um arcanjo que ele mesmo matou. Desde ent?o, conta-se que ele vaga entre dois mundos, entre duas formas de ser. às vezes louco, outras lúcido... Ele cisma, procurando entender o que se tornou, ou melhor, procurando saber o que e quem é...

  - Se ele pender para o mal, acha que conseguiremos dominá-lo?

  - Sinceramente, n?o fa?o ideia! – respondeu RoupaSuja, o olhar perdido, pensativo. – Dizem que até mesmo os dois dem?nios maiores o respeitam, o temem. N?o sei...

  - Você o sente? – perguntou para RoupaSuja sentado à sombra, brincando com uma pedra na m?o.

  — Sim! Ele ainda está lá, parado, pensativo. Eu o vejo cismando sobre uma flor do mato, uma pequena flor azul que faz crescer entre as pedras. Você n?o o sente?

  - Meio difuso... Sabe por que ele se expos? Essas terras n?o s?o as montanhas onde os dem?nios dominam. Ele se aprofundou demais – murmurou observando as altas serras e os picos mais altos. – Ele tem autoriza??o para estas terras?

  - Sim, por todas as terras. Ele tem a autoriza??o do arcanjo...

  - Mas outros dem?nios também mataram anjos e arcanjos, e nem por isso têm seus pensamentos e autoriza??es.

  - Ele n?o matou apenas. Acredito que, ao perceber e aceitar que morria, o arcanjo se insinuou dentro dele.

  Bra?oDePedra ficou em silêncio, cismando.

  - Você quer dizer que o arcando se doou, é isso? – estranhou.

  - é o que parece, meu amigo.

  – E o que ele procura aqui, nos picos de nuvens?

  - Talvez um refúgio, silêncio para escutar sua alma.

  - Será? – duvidou, devolvendo com suavidade a pedra ao lugar de onde a havia tirado. Ent?o se levantou, o olhar analisando o topo da montanha mais alta, bem diante deles. – Ele n?o veio em paz para cá. Se antes esses eram os picos de nuvens, agora todos os chamam de agulhas negras. Ele matou muitos...

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  — Sim! Mas tudo leva a crer que o medo dos que aqui viviam os levou a tentar recha?á-lo, o que n?o foi nada inteligente, n?o é mesmo? – rebateu, retomando o caminho para o topo.

  - Ele n?o está aqui... – conferiu Bra?oDePedra assim que subiu o último pared?o de pedra e fincou o pé no topo da montanha.

  - Ele estava aqui. Eu o senti até agora há pouco...

  Ent?o os dois ficaram em silêncio, um arrepio tomando todo o corpo.

  Um poder tremendo surgiu como que por magia bem às costas dos dois.

  Muito lentamente foram se virando.

  O que viram os deixou confusos.

  Havia à frente dos dois, encarando-os com um misto de curiosidade e aten??o predatórias, um ser imenso e poderoso. Ele mostrava as asas meia abertas, marrons, de couro grosso. O corpo parecia feito de couro marrom avermelhado e espesso, repleto de runas estranhas como desenhos negros que pareciam vivos. Seus olhos eram vermelhos e inteligentes. Tudo nele exalava independência, poder e desprezo.

  - Ent?o aqui está você, Mercator... – cumprimentou RoupaSuja, os olhos estudando o gigante que os examinava amea?ador.

  - Uma decis?o, um ponto sem volta... Vocês me definem?

  - Como? – Bra?oDePedra titubeou. A mente dele era hermética. Nem um mínimo ele a conseguia sentir, e ele parecia n?o demonstrar saber que ele procurava sondá-lo.

  - Vocês me procuram...

  RoupaSuja aumentou suavemente seu poder, e Mercator o olhou curioso.

  — Medo, anjo?

  - Você é poderoso! Mas n?o é medo, é apenas respeito, Mercator.

  - Sei o que procuram, sei o que querem.

  - Eu acho que n?o... – adiantou-se Bra?oDePedra.

  RoupaSuja se martirizou por n?o ter mantido Bra?oDePedra sob observa??o. Num momento Bra?oDePedra estava preso, o corpo hirto, suspenso a poucos centímetros do ch?o. Mercator n?o o olhava, mantendo toda a aten??o sobre RoupaSuja.

  - N?o, n?o fa?a isso. Você n?o quer destruí-lo...

  Um grito apenas, e Bra?oDePedra se desfez.

  RoupaSuja, incrédulo, observava o lugar onde Bra?oDePedra estivera, uma tristeza imensa tomando-o. Devagar levantou os olhos para o dem?nio, a m?o no cabo de uma espada ferruginosa e rubra que crescia ao lado do corpo.

  - Um anjo. Raiva, ódio... Naturais. A raiva e o ódio s?o motores, energia... Dem?nio é o meu nome para você...

  RoupaSuja o examinou com bastante cuidado, e percebeu que ele nem mesmo se dava conta de ter matado Bra?oDePedra. Para ele Bra?oDePedra n?o existira, nem nunca tinha existido. Devagar tirou a m?o da sua espada e sondou ao redor, e os viu. De muito longe anjos e dem?nios os observavam com extrema aten??o.

  > N?o sou gente ou sombra ou animal. N?o sou vida em corpo, n?o sou essência. Eu sou consciência...

  - Quem sou eu, quem é você... Você sabe quem o observa?

  - Dem?nios e anjos.

  - Sim, dem?nios e anjos. De um se tornará inimigo, mesmo que ao outro n?o se una.

  - Minha consciência n?o depende do que eu me tornar, pois o que eu me tornar será por um tempo breve demais.

  - N?o entende que você n?o irá se tornar? Você sempre foi o que é. O que o afeta, o que deixa que o afete é o que o define. Se algo lhe faz mal, ou bem, é porque encontra uma resposta em você.

  Mercator ficou estático. O ar mudou em torno da montanha. Havia uma tens?o, como a que antecede uma descoberta, o momento antes do salto do predador.

  > O universo em uma flor... – RoupaSuja insistiu com suavidade. - Cada coisa que olhar terá muito a lhe dizer, de renova??es e renascimentos, de inspira??es e solid?es. Vida... Ser vivo é ser consciência, como tudo o que o cerca, desde a montanha até a última pedra sob o céu, e o último ser que se diz ser. Você n?o é a única vida consciente aqui. Toda a vida tem consciência, quer ela saiba disso ou n?o, quer você enxergue isso ou n?o.

  A tens?o aumentou quanto mais RoupaSuja se aproximava. Mercator n?o se movia, n?o se denunciava. Cada palavra um grilh?o, construindo uma pris?o.

  Ent?o ele se moveu.

  RoupaSuja estava estirado de costas no ch?o, o bra?o direito puxado com brutalidade para trás, preso com sua asa, de onde minava sangue na raiz.

  A dor era imensa, mas RoupaSuja acionou cada músculo. Precisava de mais algum tempo, um mínimo de tempo.

  Com uma for?a descomunal girou o corpo e se libertou, se plantando à frente do gigante.

  A dor o tonteava. Mas o que estava para acontecer lhe dava a paz necessária.

  Mercator se refez e, num átimo, sacou a espada e atingiu o peito do anjo, penetrando poucos milímetros. Mas o anjo bloqueou o movimento dos pulsos, que buscavam ir mais fundo para ent?o subir a espada e cortá-lo ao meio. Sem pensar puxou os pulsos para si aprofundando a espada em seu corpo e se aproximando de Mercator. A espada penetrou e atravessou seu corpo, parando no cabo.

  - A flor n?o mentiu... – RoupaSuja sussurrou. – A flor n?o mentiu – repetiu num murmúrio quase inaudível.

  Ent?o uma onda de luz, poderosa, cegante, encheu o lugar.

  Mercator dobrou-se, o joelho direito no ch?o, a espada tombada ao lado.

  Com um suspiro profundo levantou os olhos. Tudo estava vazio, e lá somente o vento brincava entre as pedras.

  Uma pequena flor amarela perto do joelho, pacífica, feliz, cheia de poder, irradiava sua luz.

  - A flor n?o mentiu – ele repetiu para si, tocando com suavidade a flor, lembrando-se dos olhos que se despediam.

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