O poder que damos à morte é aquele que nos perguntamos incessantemente enquanto ficamos com os olhos vazios sondando o eco.
1
Mulo estava pensativo, os olhos perdidos ao longe. Ent?o se voltou, observando seus amigos em silêncio ao lado do corpo dela, que estava deitado sobre um caramanch?o de palhas e madeiras.
Com o rosto abatido se aproximou e colocou suas m?os sobre as dela, cruzadas sobre o peito.
- Ela vai voltar – murmurou Avenon, abra?ado com Sol.
- Eu sei... Mas, será que vai se lembrar de mim? – Mulo gemeu.
- Tenho certeza de que vai... O que há entre vocês é muito forte, tal como...
- Como Lázarus e Ariel – completou Mulo, uma dor fina escorrendo pelo seu rosto.
- Só que sem a confus?o que há entre eles – Avenon deu um sorriso fino e um pouco distante, no que foi imitado pelos outros dois, ao se lembrar das vezes que vira os dois encarnados, que sempre davam um jeito de um matar o outro assim que se encontravam.
- Gostaria de encontrá-la, antes que des?a para esta dimens?o – cismou, a voz ao longe.
- E para que, meu amigo?
- Para lhe pedir para descer em um corpo mais longevo – sorriu abatido, deixando o silêncio tomar todo o seu semblante.
- Posso? – perguntou Sol se afastando de Avenon e iluminando a m?o direita.
- Só mais um pouquinho – pediu Mulo. – Só mais um pouquinho...
- Claro...
Ent?o sol tomou uma acha de lenha e ateou-lhe fogo, entregando-a a Mulo, que sorriu agradecido.
Mulo examinou sua Valentina com cuidado, como se após tantos anos ainda precisasse guardar pequenos e disfar?ados detalhes. Apesar da idade avan?ada, das rugas e bolsas sob os olhos, ainda era o ser mais belo que conhecia. Deu um gemido de dor quando avan?ou o fogo.
Ent?o se afastou um pouco, vendo as chamas crescerem e se elevarem, envolvendo as palhas e lenhas e ... Valentina.
Com um demorado suspiro se afastou na companhia dos amigos quando o fogo e tudo o que lhe dera vida se foram.
- Bem, meus amigos, acho que Valentina estava certa. Ela queria muito encontrá-lo.
- Héim??? Fala sobre Lázaro, Mulo?
- Sim, sobre ele. Ele n?o é como nós, n?o está sujeito ao véu do esquecimento. Ele n?o esquece, podendo apenas fingir isso, porque ele se esfor?a em n?o lembrar, em honra a ela. Ent?o...
- Acha que devemos mesmo buscá-lo?
- Ainda n?o sei, Sol, mas podemos apenas encontrá-lo e, depois, dependendo do que sentirmos, ent?o aí decidiremos. O que acham?
- Será que ele se for?ou a se esquecer de nós? – perguntou Avenon, uma tristeza sondando sua voz.
- Certeza que n?o. Mas, Ariel foi tirada dele de uma forma t?o ... N?o tem explica??o... – Sol gemeu baixinho, se apegando com mais for?a no bra?o de Avenon. – Tentaram tirar a honra deles até quando os matavam ...
- Mas n?o conseguiram, tenho certeza... é, está certo... Você pode achá-lo, Sol?
A flor-de-fogo deu um suspiro e fechou os olhos, se estendendo pelas montanhas e pelo céu.
De súbito, como parte de uma magia, toda a floresta pareceu brilhar, cada árvore se mostrando, todas interligadas; todos os animais se mostrando, todos interligados. Ent?o viu as sugest?es das luzes das pessoas e dos homens e n?o pode deixar de sorrir, como sempre fazia, quando contemplava o mundo assim.
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Suavizou ainda mais a sua respira??o e se aprofundou nas energias, nas luzes que vagavam no mundo. De quando em quando via novamente aqueles mesmos borr?es de luzes quase escapando ao espectro de luzes, que sabia serem os anjos, e respeitou que n?o desejassem ser postos à vista, como viu borr?es mais escuros das sombras, que tentavam atingi-la com descargas de energias ruins assim que se viam percebidos.
Por um bom tempo ficou ali, indo de lado a lado, procurando. No momento em que pensava desistir algo se insinuou em sua mente e lhe incentivou a ficar só mais um pouco. Ela suspirou e regularizou novamente a respira??o e abriu a mente.
Foi ent?o que o viu, e soube que ele resolvera se mostrar, propavelmente ao sentir que era procurado pelas pessoas que o amavam, a ele e a Ariel.
Depressa abriu os olhos marejados, agora luminosos, postos em Avenon e Mulo.
- Eu o encontrei, e ele nos espera – falou se poderando apressadamente enquanto chamava um queixada, que logo irrompeu da floresta.
II
O grande lobisomem parou sua caminhada na trilha fechada e foi se virando bem devagar, as garras de marfim se denunciando.
Os três viram seu enorme e curvado corpo se retesar e o ódio assomar violentamente, enquanto as presas se mostravam amea?adoras.
Ent?o, tal como viera, a raiva e o instinto se foram, e seus modos se suavizaram.
Devagar o grande bicho se aproximou deles. Com um impulso forte e leve, galgou e se sentou sobre um tronco de um grosso jequitibá tombado na floresta.
- é você, Lázarus? – Avenon perguntou, todo surpreso.
- N?o estou bonito? – o lobisomem sorriu.
- Pelo Trov?o, você está medonhamente aterrador. A encontrou? – perguntou Sol.
Com um pequeno tremor a forma angélica de Lázarus se mostrou. Lá a mesma armadura judiada, a grande espada ao lado do corpo, como duas novas que viram apontando às costas, que na hora viram se tratar das espadas de Ariel. E havia aqueles olhos bondosos e tristes. Ent?o a forma tremeu novamente, e o grande lobisomem de aspecto terrível os observava atentamente.
- Da última vez nos matamos assim que nos vimos – o lobisomem riu baixinho. - Eu pareci muito fraco, como um humano – esagar?ou um sorriso que fez Avenon arrepiar. – Errei feio...
- E ela estava como?
- Ela era um mapinguari...
- Ent?o você escolheu mal mesmo – Avenon n?o aguentou e sorriu, e Lázarus notou sua tristeza.
- Eu senti Valentina deixando esse plano – contou, os olhos pesados voltados para Mulo.
- Nós queimamos o corpo que ela usava agora há pouco – sussurrou.
Lázarus inspirou demoradamente, os olhos postos no céu.
- N?o deve sofrer, meu amigo. N?o devem sofrer, meus amigos. Vocês logo v?o encontrá-la novamente. E ela vai te reconhecer de cara, Mulo – falou ao ver a inseguran?a no amigo, sorrindo ao ver como ele se iluminara com o que dissera. – Quando ela partiu ela estava simplesmente... radiante. Ela estava feliz,
- Você viu isso? – Mulo quis saber.
- Vi... Vai ficar tudo bem. Ela n?o vai abrir m?o do que s?o juntos.
- Ela é incrível – suspirou Mulo.
- A verdade, meus amigos, é que Valentina nunca foi o que aparentava, tal como vocês n?o s?o. Vocês s?o algo mais.
- O que quer dizer com isso? – Sol estranhou.
- O que eu disse, apenas isso. Fiquem tranquilos; tudo vai se mostrar e se acertar.
Ent?o todos se entreolharam e sorriram mais aliviados.
- Nossa, é bom demais ter você de volta, Lázarus – falou Avenon em todo sua franqueza. – é bom demais...
- Também me sinto bem com vocês, meus amigos, porque os considero minha família. Mas, talvez demore um pouco mais para a gente poder se reunir novamente. Eu tenho que fazer o que tenho que fazer.
- Despertar Ariel...
- Sim... E como todos dentro dessa experiência, ela n?o pode ser obrigada, n?o pode ver e saber o que n?o está pronto. Além disso, devo isso a ela. Assim, minha família, vou adormecer um pouco, e vocês ser?o lembran?as novamente. Só nos aguardem, porque vamos voltar – falou se erguendo em toda sua enorme altura.
- Mas por que, se n?o foi você que a ...
- Nessa realidade que ela quis criar, ou que a fizeram desejar criar, eu sou esse que a traiu e torturou. Ela tem que ver a luz e sair da caverna, por si...
- é, está certo. E quanto a nós? – perguntou Sol, a confus?o em seus olhos. – Vocês também s?o nossa família.
- Aconselho encontrarem e protegerem a Valentina, e se apresentarem a ela quando ela estiver preparada. Quando a mim e à Ariel, podem ter certeza de que, quando resolvermos o que nos atrapalha, vamos encontra-los.
- Ah, entendi... – riu Avenon. – Um chega prá lá em nós...
Mulo sorriu ante a espontaneidade de Avenon, que havia ganhado uma cotovelada divertida de Sol.
- E ele está certo – Mulo suspirou. - Isso é maior que nós e n?o devemos interferir. O tempo certo vai se apresentar. Mas, foi muito bom te encontrar, Lázarus. Bom mesmo.
- Também acho. Akindará, meus amigos...
- Akindará – disseram em despedida.
Ent?o, devagar foram se afastando entre risadas, brincando com Avenon.
O grande lobisomem resmungou de confus?o ao se ver sobre o tronco caído do jequitibá, que jurava já ter ultrapassado. E mais confuso ainda ficou ao ver três pessoas se afastando, parecendo muito animadas.
Por alguns segundos pensou se n?o deveria dar cabo deles. Com cuidado os sondou, e n?o viu amea?a neles. Ao conrário, estranhamente se sentiu bem com suas vozes e risadas, ainda mais quando a mulher se virou para ele e sorriu.
Por fim, resolveu desconsiderar.
Com um salto majestoso tocou o solo já caminhando com suas longas pernas. Avan?ou o bra?o e no ar matou o pequeno cervo que se assustara com sua presen?a. Distraído deu uma grande mordida e arrancou um naco de carne, seus olhos se voltando para um local muito ao longe, onde sentia uma presen?a estranha e inc?moda que parecia atraí-lo.