Dedos magros e escuros que se esticam das sombras e temem a luz. Que anel é esse que ostenta? Eu o vi há muito tempo, e ele pertencia a um anjo. Era você?
I
Uivo sentiu que a sua alma ia parar.
Como suspenso no ar apenas ficou observando, sentindo seu cora??o se apertar no peito. Baixou os olhos, a respira??o pesada. Nunca em sua vida vira algo como aquela mulher. Havia muitas mulheres e pessoas lindas ao seu lado, mas nunca uma como aquela. Os cabelos cheios meio dourado-avermelhados, a pele bronzeada, as pernas bem torneadas, os seios duros, o corpo com curvas estonteantes, a atitude confiante, o olhar franco e desdenhoso da impress?o que causava.
Tudo nela o atingiu profundamente.
Tomado de confus?o ficou se perguntando se n?o havia algo de magia no que ela causava, porque essa era a natureza delas.
Sentiu que sua alma e seu corpo estavam um pouco descolados um do outro, o que o deixou confuso com o que sentia. Baixou os olhos, perdido em sua confus?o. Devagar empurrou tudo para o fundo e voltou seus olhos para o que o cercava, prestando aten??o nos detalhes das outras coisas, pensando com fúria, lutando para se recompor.
Seus olhos passearam por todos na aldeia e se abandonou olhando para alguns lobos na orla da floresta, de onde tudo olhavam com fúria e desconfian?a.
Se deixar ser tomado de fúria assim tinha suas vantagens, pensou. Mantinha a forma humana e pumacaya, e ainda se dava ao luxo de ser uma penugem de dem?nio. Balan?ou o corpo com vigor, agitando os bastos pelos do lobo guará, arejando o couro. Viu a rea??o das pessoas e homens, que viam em sua forma uma grande amea?a e perigo, t?o perigosos que até mesmo os lobisomens, e a grande maioria dos nefelins e até mesmo das pessoas, respeitavam, se abstendo de incomodar.
No entanto, se ele era um caso raro e curioso, aquela mulher, pelo que percebera, e ouvira contar, também o era. Ela era um raro nascimento de um anaquera com uma flor-de-fogo. Sabia que era praticamente impossível que suas crias sobrevivessem, mas também era sabido que quando vingavam davam ao mundo seres soberbos e perigosos. E ali estava um deles.
No entanto, apesar de toda a beleza daquela pessoa, havia algo que o incomodava. Disfar?adamente a observou, e soube o que era e, ao identificar, toda a beleza que via deixava de existir, sendo substituído por um desprezo, do tamanho do desprezo que a via destilando: ela desprezava demais os nefelins, observou, como parecia acontecer com toda a vida. E seu desprezo e ódio aparentes, sua arrogancia e distancia o incomodou, e o indisp?s.
E todo esse sentimento aumentou quando viu seus olhos postos sobre si. Havia nojo neles.
Empertigou-se e, tomado de uma estranha tranquilidade, virou o rosto, após a olhar com intenso desdém.
Tinha que continuar seu caminho.
Era muito perigoso se envolver com as feiticeiras.
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II
Trília revolveu a água enfeiti?ada e desfez a vis?o do estranho ser.
- Ele é um dem?nio – a m?e sussurrou maravilhada. – Eu já vi algo assim, há muito e muito tempo atrás. Mas, aquele era só um dem?nio, e este parece ser algo mais. Que estranho – cismou, pensando sobre a imagem que vira no tacho.
- Por que o deixou ir? - perguntou a mulher, observando com curiosidade a filha mais nova.
- Porque eu já sei o seu nome, e ele n?o poderá se esconder de mim.
- Sempre arrogante – cuspiu o irm?o. – Isso ainda vai te derrubar, você vai ver.
- Pare de jogar praga sobre sua irm? – repreendeu a m?e. – N?o devemos nos enfraquecer – avisou.
- Traga o filhote – ordenou a m?e para a mo?a.
- N?o vou pegar nenhum animal para ser morto – a menina avisou com tranquilidade.
A m?e bufou, parecendo cansada.
- Vá e traga – ordenou para o filho.
- Aproveitadora – rilhou se levantando e indo até o po?o profundo, onde o filhote estava amarrado no pesco?o por um fio longo de cipó. Com brutalidade o puxou e, sem se incomodar com os gritos e protestos do animal, o puxou para fora e o atordoou com uma pancada na cabe?a.
Trília observou tudo acontecendo com total desprezo.
Trília era uma bruxa de tez clara de corpo esguio. Os bra?os eram longos e seus olhos eram de um verde bem forte. A cabeleira era de um vermelho fogo que o sol tornava dourado quando incidia nele.
Apesar de seus olhos confiantes e firmes, era bem claro que ela n?o tinha a confian?a do irm?o. Até mesmo sua m?e a tinha em pouca conta, frente ao filho. Ela era a mais nova dos dois filhos, ambos bruxos.
A feiticeira tirou os olhos da m?e e do irm?o e os colocou no serrilhado das montanhas no sul.
- Vocês s?o imbecis – murmurou baixinho, cuspindo no ar. - Isso n?o é necessário, vocês sabem, n?o sabem? – debochou, falando agora um pouco mais alto para ser ouvida. – A energia está no ar. E é só usar...
- Depende, Trília – sorriu a m?e com repreens?o nos olhos. – Você pode saber que está no ar, e até mesmo saber os nomes das coisas, mas seu feiti?o ainda será o mais fraco. Precisamos do medo, do terror da morte, para fazer contato com o outro lado. Você consegue isso com suas folhas e seus nomes e com sua respira??o? – riu com desdém, vendo o filho se aproximar arrastando atrás de si o pequeno animal desmaiado, um filhote de uma on?a negra.
- Com certeza bem mais que vocês... – riu por sua vez, sem tirar os olhos do que estavam fazendo.
Trília estava na porta da casa, observando incomodada a pequena on?a negra, que o irm?o despertara e passara a torturar, para aumentar o seu terror até que ela, tomada de intenso terror, novamente desmaiou. Assim que sentiram que ele estava terrivelmente mortificado o lan?aram para dentro de um caldeir?o de barro, que estava sobre uma fogueira viva.
A água ainda estava morna, mas assim que seu corpo a tocou, o animalzinho despertou. Depressa desceram uma pesada tampa de pedra, e ficaram dando gritos de prazer.
- Ent?o maninha, n?o vem ajudar? – debochou seu irm?o Túnis, sob os olhos reprovadores da m?e, fazendo for?a para manter a tampa no lugar.
> é... N?o gosta mesmo de nenhum feiti?o que use animais? – riu, pegando do ch?o uma pesada pedra.
Trília o observou, e se viu novamente surpreendida com a enorme for?a que ele tinha.
- Isso só porque gosta de usar o feiti?o depois que ele está pronto – falou com azedume a m?e. – é uma pregui?a só – reclamou bufando por levantar o peso.
- N?o precisamos disso para fazermos nossos feiti?os... – replicou. Com naturalidade falou o encanto, e a cobra que vinha se esgueirando para o seu lado, enviada pelo seu irm?o parou e, após alguns segundos, voltou para o lugar de onde viera.
Túnis, sem qualquer dificuldade, p?s a pesada pedra sobre a tampa da vasilha. Ignorando o miado forte e apavorado do filhote ati?aram ainda mais o fogo. Sentados ao lado, totalmente concentrados, a m?e e o filho ficaram aguardando. Os sons de unhas arranhando desesperadamente as paredes da vasilha de barro, e os miados que se tornavam cada vez mais apavorados faziam a alegria deles.
A água ferveu, os miados de panico foram se transformando em lamentos, que foram ficando cada vez mais baixos, até que o silêncio se fez.
Aguardaram mais, até que o único som que ouviram foi o da água borbulhando.
Trília se aproximou silenciosamente, sob o olhar de goza??o do irm?o e da m?e.
Ent?o os bruxos abriram a vasilha e retiraram os peda?os de pele, que lan?aram fora. Os ossos dividiram entre si, como também a água que dividiram em quatro cabacinhas, das quais cada um se apossou.
O feiti?o da invisibilidade e da vis?o estava pronto.